Esta história aconteceu há treze anos, em São José dos Campos, em uma tarde de terça-feira, daquelas em que nunca esperamos nada. Saiba o leitor que tardes de terça-feira, como por acaso esta na qual escrevo estas linhas, podem mudar toda uma vida.
Encontrava-me na época com dezoito anos e trabalhava como mecânico de manutenção em uma fábrica de, pasmem, fraldas descartáveis. Até hoje lembro-me das grandes e barulhentas máquinas cuspindo fraldas, centenas por minuto, para variados gostos, bundas e bolsos. Minha função era nunca deixar uma máquina dessas muito tempo parada, houvesse o que houver. Com tanta merda no mundo, meu trabalho era importante, diziam, em tom de brincadeira.
Quando tudo andava bem, lembro-me que ia para detrás de alguma destas máquinas. Na maioria das vezes fingia fazer anotações sobre as condições das polias ou correias, mas na verdade, hoje confesso, tentava mesmo era fazer poesia, ainda que na época pouco lia para além de manuais técnicos. Tudo mudou nesta terça-feira, quando voltando do almoço, um colega me fez um sutil elogio: “você tá com o burro na sombra, saiba disso! Agora é só ir levando com a barriga, até se aposentar”.
Respondi com o silêncio, fazendo no momento uma conta mental: esse dia chegaria em exatos 33 anos. Durante toda aquela tarde nenhuma máquina quebrou, mas tampouco houve poesia. Passei a observar cada um daqueles que estavam ao meu redor e, para alguns mais velhos, passei a perguntar se haviam deixado algum sonho para trás.
Um forte negro do interior de São Paulo, o torneiro Wilson Lopes, queria ter sido historiador, saber das coisas do passado. Geraldinho, um soldador franzino, queria ter continuado em Lagoa Santa, Minas Gerais, sua terra natal. Sr. Manuel, cujo filho a pouco tempo descobriu um câncer no cérebro, queria mesmo ter sido violeiro, até arriscava umas modas nos tradicionais churrascos de fim de ano. Ao terminar meu turno nesta tarde havia constatado que quase todos os homens ao meu redor haviam deixado algum sonho no passado.
Naquele mesmo dia, ao sair do trabalho, ressabiado que só, fui visitar o João Coimbra, que estava de férias e tinha um sebo perto da faculdade de direito. João tinha uma doença degenerativa que o fazia perder um pouco da visão a cada ano que passava. Com a mulher pegou as economias e abriu este comércio, no qual esperava se dedicar quando a fábrica o aposentasse por invalidez. Trabalho infeliz, pois não poderia ler os livros que ele próprio vendia.
Seja como for, João gostava de falar sobre histórias e autores. Depois de uma conversa decidi levar alguma coisa. Meu amigo usou o pouco de visão que ainda lhe restava para examinar minuciosamente o livro que havia escolhido. Negou vendê-lo e me repreendeu, dizendo que aquilo era coisa para adolescentes. João vasculhou com parcimônia a prateleira que ficava atrás de seu balcão; após alguns minutos tirou um grosso exemplar, com uma bonita capa dura de cor verde escuro, onde se via, em linhas douradas, dois homens armados em lanças, montados em seus cavalos.
Quase quatro anos depois, numa outra tarde de terça-feira, para o espanto de todos, pediria demissão daquele emprego. Havia passado no curso de Geografia, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em São Paulo. Enfrentaria dali pra frente, viria saber, outros moinhos de vento, que não as máquinas.
História do Morador:José Elhage
Local: São Paulo
Publicado em: 11/03/2004
Sinopse:
Infância. Curso de Contabilidade. Juventude. Cotidiano. Casamento. Migração para São José dos Campos. Descrição da loja. Tipo de clientes. Avaliação sobre o comércio. Descrição do comércio em São José dos Campos. Relação pessoal com o comércio.
História
IDENTIFICAÇÃO
Sou José Elhage. Nasci em 10 de junho de 21, no Rio de Janeiro - Distrito Federal, naquela época.
FAMÍLIA
Meus pais são Amin e Hacibe. Minhas irmãs são Adélia, Helena, Olinda, Julieta e o irmão, Chater... somos seis. Meus pais eram comerciantes. Ele trabalhava no Rio de Janeiro junto com Nicolau. Nicolau foi sócio dele no Rio de Janeiro, depois ele veio para São José dos Campos e, futuramente, ele convidou meu pai para vir aqui. Em 1927, o Nicolau fundou a Casa Confiança; em 1929, o papai veio do Rio para ficar com ele aqui, e a nossa família também ficou em São José dos Campos. Meu pai imigrou em 27; em 29 veio pra cá. Mas já morava no Rio bem antes. Eu tinha seis anos e vim junto. Passei minha infância em São José dos Campos.
EDUCAÇÃO
Estudei aqui, fiz escola de comércio. O curso era bem normal mesmo. Era muito eficiente, professores muitos bons. Eu me lembro da Maria Luiza e vários outros, como Joaquim Candelária, Jorge Moreira, que hoje é, hoje nome de rua. Tinha professores de categoria, muito bons. E fomos muito felizes no curso. Tinha muitos colegas. Era uma turma bem grande mesmo. Tinha o Tufi Simão e o Nagib Simão, eram dois irmãos que estudaram lá conosco. A maioria dos rapazes estudou neste colégio. Era o melhor colégio que tinha. Era mais gente de São José mesmo. Com o tempo, talvez de Jacareí - Jacareí sempre dependeu de São José dos Campos para estudos. Acredito que vinha sim, de Jacareí, Caçapava, provavelmente alguns, Taubaté, não acredito não.
MORADIA
Morava do lado da loja, na praça João Pessoa. Era uma casa relativamente boa, confortável, e ficamos ali até 1939, quando papai adquiriu um terreno na rua Vilaça e construímos uma casa onde nós estamos até hoje, número 131. Minha irmã ainda mora lá até hoje. É uma casa boa, bem construída.
INFÂNCIA
Eu trabalhava desde os doze anos na loja com meu pai, mas sempre havia tempo de sair e brincar com os amigos. Jogava muito futebol porque ali na igreja, no largo da Matriz, havia uma mureta e o espaço em cima dava para fazer um campinho. Depois eles reformaram a praça, ficou muito bonita, como está até hoje. Eu estudava à noite, justamente para poder colaborar durante o dia na Casa Confiança.
IMIGRAÇÃO
A colônia libanesa aqui sempre foi relativamente boa, não grande, grande... Sempre foi boa. A sociedade dos libaneses se misturou muito com os brasileiros, ele não tinham assim, uma radicalização de querer ficar convivendo à parte dos brasileiros, eles se misturavam, os filhos, tudo. Tanto é que nossa amizade é toda de brasileiros. Não só visito uma outra família por ela ser libanesa, de jeito nenhum, nunca houve isto. Os libaneses preferem se misturar, ele é fácil de compreender e aceitar a sociedade onde ele está vivendo, ele tira proveito maior da sociedade. Não tem esse negócio: “Quero ser libanês a vida inteira”. Nunca, nós nem lembramos que somos libaneses. É porque vocês perguntam que a gente responde [que é de família libanesa]. Meus filhos nem falam árabe, eu falo porque estive fora visitando o Líbano, na ocasião eu aprendi. Por aqui a gente não aprende nada. Meus filhos não sabem falar árabe. Falava pouco com meu pai; mais era português mesmo. Eles não tinham este sistema. Existem famílias de outras nacionalidades que fazem questão que o filho fale no idioma deles, com os mais velhos. O libanês não tem disso, não: ele dá plena liberdade. Toda vida foi assim, que eu me lembre. Não são nacionalistas no sentido de querer que o filho continue sendo libanês, eles preferem que o filho seja do local onde ele é, que seria brasileiro. Todos nós não sentimos que somos libaneses, só quando vocês perguntam a gente lembra que é. Não porque a gente fica pensando, preocupando, estudando. Eu não sei se isso é bom ou mau, mas para o brasileiro é bom. Talvez para o libanês não seja tão especial, mas eles não são muito apegados. No comércio de São José dos Campos tinha muitos imigrantes. Mas não só de libaneses, tinha bastante judeus e eram todos amigos da gente. Havia uma facilidade de comunicação. E já existia a Associação Comercial, desde 34 ou 36, e meu pai sempre foi diretor da Associação Comercial. Atualmente, eu sou, continuo. A gente tem uma preferência por esta organização: eles olham pra nossa família com bons olhos, e nós colaboramos bastante.
CIDADES
São José dos Campos São José dos Campos era uma cidade bem provinciana. Nossa casa ficava na rua Cerqueira Campos com a praça João Pessoa, e lá tinha somente a calçada e o passeio. Onde passam os carros era mais areia - que São José é mais arenosa - não tinha calçamento nenhum. Só bem mais tarde, depois de 40 é que começaram a fazer o calçamento na rua Cerqueira Campos, rua Quinze de Novembro, rua Sete também foi em seguida. A avenida São José teve uma evolução muito grande quando eles derrubaram todas as casas que davam mais pro banhado e ficou como é hoje, aberta. Antigamente, a rua São José era estreita, tinha casa tanto do lado da direita como da esquerda. Atualmente, só tem do lado esquerdo. É uma cidade que desenvolveu muito - São José dos Campos era bem provinciana mesmo. Tinha tudo, só que não era como hoje, por exemplo, nós temos a Vila Maria, não existia, era tudo terreno, foi crescendo com o tempo, só tínhamos uma avenida: Rui Barbosa, que comunicava Santana com o centro de São José. O resto era tudo mato. Aqui onde é a esplanada, era uma fazenda, pertencia aos Martins, e eles foram se desfazendo, vendendo, até formar este ambiente todo que nós temos hoje: bairros bem populosos, bem construídos. A cidade evoluiu bastante. Lembro da época dos sanatórios: o Vicentina Aranha, Esdras, o Dória, todos estes sanatórios tratavam dos doentes que ali ficavam isolados, não se misturavam com a população, absolutamente. Tinha muitas pensões também, na rua Vilaça por exemplo, onde morávamos, naquela ocasião que tinha três ou quatro pensões. Os doentes apenas saíam, mas não se misturavam com as pessoas sãs, de jeito nenhum. E aos poucos, com o tratamento, com a penicilina, aos poucos foi melhorando, e quando houve essa medicação bem moderna que acabou com a tuberculose, aí tudo ficou bonito em São José dos Campos. Aí cresceu mesmo, a cidade foi cada vez evoluindo mais. No comércio não havia separação: os tuberculosos tinham acesso a todos os lugares. Mas não se misturavam. Por exemplo: não havia mistura de alimentação, eles não se alimentavam, iam apenas para compra. Eram ótimos fregueses, eram pontuais para pagar, tinham crédito, pagavam muito bem aquele parcelamento, não faltavam com a obrigação de jeito nenhum. Eram sempre pessoas mais ricas mesmo que tinham este tratamento.
JUVENTUDE
Minha juventude foi normal, muito boa, eu só tenho boas recordações. Tenho muitas amizades, fazíamos footing. A rua Quinze de Novembro, onde tem os bancos hoje, ali depois das sete horas da noite havia um footing, da praça da Matriz até a altura do banco Bradesco. Nosso footing era ali. Era um tal de ir e voltar, os rapazes ficavam de um lado, as moças de outro, quando havia aquela possibilidade de eles poderem se comunicar, naturalmente havia um namoro, tudo normal. Havia muita comunicação entre rapazes e moças. Houve uma ocasião que quando veio o ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica] pra São José, quando chegou o pessoal do ITA, que eram todos rapazes, começaram a namorar as moças de São José dos Campos, aí foi um deus-nos-acuda, porque os rapazes eram todos de nível superior e começaram a namorar as moças de São José dos Campos, e isso prejudicou um pouco a facilidade que os moços da própria cidade tinham de se comunicar com as moças. Então houve muita briga, muita rixa, mas sempre acabaram bem. E muitas moças se casaram com estes rapazes que vieram trazer este progresso para São José dos Campos, que foi o ITA. Tinha muito baile, dançávamos demais. Tinha na Associação, tinha no Esporte - eram dois clubes muito bons - e de sábado para domingo havia sempre esta reunião dos rapazes e moças, era muito alegre. Carnaval então, era a coisa mais linda: o pessoal não tinha muita malícia, havia esta comunicação mais amiga; a gente não ia com segundas intenções, ia mesmo pra pular, dançar. Era muito proveitoso. O Carnaval nosso foi muito bom, durante muitos e muitos anos.
FAMÍLIA
Minha casa era normal. Inclusive tínhamos muitos parentes em São Paulo e no Rio porque moramos bastante tempo lá, meus primos. Havia reuniões nos domingos, eles faziam questão de vir nos visitar. Vinham primos de São Paulo, Rio, sogra - a família fazia reuniões de almoço nos domingos, quando não, a gente ia a São Paulo pra retribuir. Havia sempre essa comunicação, na minha família nunca vivemos sós, sempre tivemos um relacionamento muito bom entre os familiares, tanto de São Paulo como do Rio, como até hoje continua, sempre nos visitando.
TRANSPORTE
As viagens eram de ônibus mesmo, só que demoravam um pouquinho mais. Em vez de ser em um hora, uma hora e dez, uma hora e vinte, levava duas horas e meia, mas a gente ia do mesmo jeito. De trem quase ninguém ia, ninguém gostava de ir. Porque não tinha nenhum conforto. Uma, porque a estação ferroviária ficava longe das casas - a linha era longe - e ninguém ia ter esse trabalho de descer até lá. Não havia muito carro na época. Essa comunicação de carros e tal, e os ônibus estavam no centro, e nós tínhamos essa facilidade de procurar mais ônibus. É tudo na praça da Matriz. O trajeto até o Rio e até São Paulo era como hoje, mesma coisa. Daqui pra São Paulo não havia parada em cidades, ia direto. Daqui para o Rio tinha muitos pontos de parada, como até hoje existe. Então não houve grande modificações: era a mesma coisa que na época de hoje.
CIDADES
Litoral Ia muito pouco para o litoral. Muito pouco, porque como a gente estudava e trabalhava, não tínhamos muito tempo pra dividir com esses passeios. A gente aproveitava nos domingos, nos sábados pra se aplicar mais nos estudos. Eu sempre fui assim. Nunca repeti de ano, e assim eram os demais colegas também: procuravam ser aplicados. Mas a gente viajava pro litoral, não constante como hoje - eles vão quase toda semana. Aquele tempo quando tinha chance era de um mês, depois de dois meses. Para Caraguatatuba, geralmente. Ia de ônibus, sempre de ônibus. Vinham de São Paulo direto e passavam por aqui e outros que saíam de São José diretamente pra lá. E pro Rio de Janeiro não tinha ônibus direto daqui não, tinha que pegar de São Paulo. Passava pela estrada e a gente pegava lá. Por isso que pro Rio quase que a gente não ia, era mais Caraguatatuba.
TRABALHO
Comecei a trabalhar com doze anos. Trabalhei só na Casa Confiança, mesmo. Eu comecei varrendo a loja. Meu pai era o dono, mas nem por isso eu tinha outros privilégios. Eu trabalhei fazendo limpeza, arrumando, acertando as portas, colocando mercadorias nos expositores. E me acostumei: até hoje eu faço este trabalho com prazer. E tenho gosto. Eu sei por que eu estou pondo uma determinada mercadoria: para expor e chamar a atenção do freguês. Esta parte de venda foi muito importante pra mim, eu vendi muito no balcão. Eu atendia muito bem, os fregueses gostavam de ser atendidos por mim, eu tinha muito cuidado para agradar o freguês, procurava agradar o máximo.
COMÉRCIO
E as mercadorias que nós trabalhávamos eram de primeira qualidade. Muitos importados, e alguns eram nacionais, mas a maioria era tudo importado. Nossa casa era preferida da classe média pra alta. Aqueles que vinham, por exemplo, da roça, aos domingos, compravam conosco aqueles artigos mais baratos. Tínhamos um tecido que chamava “arranca toco”, um tecido bem grosseiro mesmo, para o pessoal da roça. E tem um detalhe importante: as noivas - isso é importante. Vinham sempre nos domingos para a igreja Matriz para fazer seu casamento, e o importante disso não era o fato do casamento - por semana tinha um ou dois - mas [que] elas vinham andando já vestidas de noiva, a pé, porque não havia carro naquele tempo e eram pessoas da roça mesmo. A noiva andava na frente e o noivo atrás, era um quadro muito particular, muito específico, e todo mundo ficava apreciando, ficava na porta assistindo a passagem. Isso sempre, todo sábado - era mais no sábado que elas vinham, faziam o casamento. Era muito bonito, muito respeitoso. Não havia assim falta de respeito porque eles vinham a pé, não, porque todo mundo andava a pé mesmo. Fazendeiros vinham comprar da gente pro pessoal da roça. Mesmo pessoal poderoso assim, de nível aquisitivo maior, vinham comprar mercadorias baratas pro pessoal da fazenda deles: brins, tricolines, organdis. Artigos pra sociedade mais alta eram bordados, lingeries, coisas finíssimas que hoje você encontra nesses magazines de São Paulo. Nós tínhamos coisas até melhores porque vinha tudo de fora, do estrangeiro. Eram duas linhas de produtos. O viajante vinha trazer pra nós; nós não íamos às casas em São Paulo. Toda firma grande importadora procurava a nossa firma. Como a nossa casa sempre foi grande, eles faziam questão de vender, porque nossa mercadoria aparecia, ela tinha um tratamento especial: o freguês chegava, encontrava e comprava mesmo. Nós tínhamos um movimento muito bom. Esta mercadoria chegava de transportadora, como é hoje. O sistema sempre foi o mesmo, sempre por rodoviária, nunca por ferroviária. Porque tem o seguinte: a ferroviária, eles talvez não fossem especializados, então demorava mais pra chegar em nossas mãos; já rodoviária não, eles traziam de São Paulo num dia, no dia seguinte já estava em nossas mãos, como é hoje. Não houve muita mudança não, apenas critérios e firmas que foram mudando.
FAMÍLIA
Trabalhavam na loja: meu pai, meu primo Nicolau, a esposa dele, Rosa. Trabalhou minha irmã Adélia, meu irmão Amim, meu irmão Chico - que foi também muito especial, o Chico, um dos melhores balconistas que tivemos em São José dos Campos, era muito respeitado. Dele que aprendi bastante coisa também.
COMÉRCIO
Para ser balconista tem que saber relacionar com as pessoas, respeitar as pessoas, não forçar vendas. Por exemplo, receber uma pessoa que quer comprar alguma coisa como se fosse uma pessoa que quer lhe fazer uma visita cordial, então você vem com sorriso nos lábios - nunca fechei minha cara pra ninguém. O freguês fazia questão de comprar da gente, eles gostavam mesmo do trabalho, e nem queriam pegar o outro, nosso colega, vinham pra gente mesmo. Eles ficavam esperando a gente servir um pra depois continuar comprando com a gente. Isto é muito importante, mas todos que estavam trabalhando conosco na firma eram cordiais. Meu irmão Chico era maravilhoso; meu pai, meu primo; Rosa foi maravilhosa também; Adélia, minha irmã, além de saber tratar bem no balcão, era uma criatura que tinha funções assim como costureira, era muito prendada: costurava, bordava fazia coisas lindas, era muito respeitada na época.
TRABALHO
Eu trabalhava o tempo todo. Chegava à noite eu ia pra escola. Terminava o trabalho - não porque eu fosse o filho do dono que teria regalias. Nada, trabalhava muito mais que um empregado - tinha outros empregados - mas eu trabalhava igual aos outros empregados: entrava às oito, meu almoço era o máximo de meia hora, já os empregados tinham uma hora ou duas, mas eu, por ser da família, tinha que mandar meu irmão ir, e não podia demorar muito, então era coisa rápida. Eu trabalhava mais horas que qualquer empregado. Chegava às sete horas da noite, depois do jantar, seguia pra escola e cursava o curso propedêutico, na época. Depois veio o curso de contador. Mais tarde, tivemos a sorte de ter a faculdade de Direito, e eu me inscrevi na faculdade, fiz os exames, continuei estudando também. Hoje sou advogado, só que não ministro, porque não dá tempo. O curso de contador fiz no Olavo Bilac. Era um curso muito procurado, era o melhor que tinha, até hoje ele é ótimo. Eles continuam com esse curso. A melhor escola que tem aqui no Vale é a Olavo Bilac, são famílias tradicionais.
COMÉRCIO
Eu nunca trabalhei em contabilidade, na loja, sempre no balcão. Contabilidade, tinha nosso contador, que tomava conta da contabilidade. Nunca nós [nos] misturávamos com trabalho de escrituração: era mais de balcão, de compra, venda, todos nós. Sempre tínhamos um contador que se responsabilizava. E vendia fiado. Vendia, e bem. Pagavam direitinho mais tarde. Com o tempo, começamos a fazer duplicatas, que antes não tinha, era mais anotações, tirávamos as notas e pagavam pelo valor da nota. Depois, para organizar melhor para o contador, tivemos que fazer duplicatas. Hoje em dia ninguém mais compra pra pagar depois, todo mundo quer pagar a vista. Uma porque o nosso preço hoje é concorrido, nós fazemos um desconto de 20% em toda nossa mercadoria, e quando se faz um desconto de 20% não se faz crédito. Pra ter o crédito, tem que aumentar o preço, e não temos mais este interesse, nem o freguês. Todo mundo quer levar vantagens. Preço baixo, todo mundo compra. A Casa Confiança fazia muita propaganda. Fazia pelo [jornal] Valeparaibano, pela rádio... Era sempre uma propaganda eficiente, atingia sempre, não só a cidade como o próprio Vale. A propaganda sempre foi a alma do negócio, pra todos os fins. Eu me lembro que quando chegava no fim do ano, na época do Natal, começando dia 20 de novembro até 25 de dezembro, o nosso trabalho era tão grande, tão grande que muitas vezes o freguês chegava na loja, a gente atendia um, tinha dois, três esperando a gente, pra cada um dos empregados - a gente era considerado como empregado mesmo, embora fosse patrão, mas era como se fosse empregado. Então nós atendíamos três, quatro fregueses. O povo tinha dinheiro, tinha condição, e podia comprar mesmo. Era muito bonito o comércio em São José dos Campos. Enfeitava a rua no Natal, fazia vitrine. Lógico Sempre. Depois que vieram os supermercados é que diminuiu um pouquinho esta parte de volume de compra. Já o freguês não vem tudo de uma vez só: o freguês é constante, todos os dias, o dia inteiro. Antes não: eles vinham em avalanche, porque eram muitos fregueses. Hoje já está dividido entre lojas e supermercados. A evolução do comércio foi essa. E nós não ficamos aborrecidos, não. Porque a gente continua vivendo tão bem, vendendo bem. E os outros também têm suas vantagens, suas ofertas, mas não são melhores os preços que os nossos, não. Apesar de serem maiores em volume, nós hoje continuamos tendo firmeza no trabalho. O nome Casa Confiança... Foi meu primo, que quando abriu em 27 deu esse nome pra casa. Em 29 o papai veio do Rio pra cá. A razão de ele ter feito Casa Confiança deve ser uma inspiração desse casal - desse meu primo com minha prima - , eles eram muito inteligentes, muito experientes. Tinham trabalhado no Rio, em outras cidades também, não eram pessoas que foram criadas dentro de São José dos Campos, não. Trouxeram o progresso de cidade, de capital. Era muito importante. Eu me sinto feliz de saber que eles iniciaram e nós estamos continuando. Eles deixaram a firma em 57. De 27 até 57 ficaram conosco, como amigos, como sócios. Chegou a época que não podiam mais trabalhar, pela idade, se desligaram; papai também se desligou. Ficou o Chico e, depois, continuou eu com ele.
TRABALHO
Assumi sozinho, mais ou menos em 74, quando meu irmão faleceu. Aí minha responsabilidade foi grande. Eu tive que assumir tudo. E hoje tem o meu filho, Ricardo, que tem três filhos. O Ricardo é que ficou conosco. Ele é hoje o mais importante da firma. Eu estou junto com ele, mas ele já está fazendo tudo muito perfeito: é competente na escritura, nas vendas, nas compras - ele assumiu realmente. Minha esposa sempre trabalhou também.
CASAMENTO
Eu conheci... Ela é minha parente e eu conheci melhor ela quando vinha no Carnaval pra São José dos Campos. É minha prima mesmo, mas nem por isso eu podia ter conhecido bem. Nos Carnavais em São José, ela fazia questão de passar em nossa casa. E nós aproveitávamos mesmo. Eu não dançava com ela não, dançava com outras muito bonitas também, que vinham de São Paulo, de outras cidades - vinha muita gente no Carnaval em São José dos Campos. No Tênis Clube, principalmente. Depois, com o tempo, começamos a ter mais simpatia. Inclusive ela ficou noiva de um rapaz em São Paulo, não deu certo. Depois desse noivado, por acaso, fui visitar minha irmã que morava em São Paulo - ela era muito amiga da minha irmã. E naquela noite ela estava lá, ela tinha desmanchado naquela noite e ia pra uma fazenda de uma prima dela, muito rica - família Mofahej - , ela ia lá pra passar uns tempos, pra esquecer dessa separação, e acabou não indo mais. Depois daquela noite eu comecei a freqüentar São Paulo e firmamos o casamento. Depois de algum tempo, é lógico, não foi logo em seguida, não, demorou. Na época eu ia para São Paulo de ônibus, nem tínhamos carro. A cidade de São José dos Campos tinha poucos carros, só as famílias mais tradicionais tinham. Nós não tínhamos carro, naquela ocasião, porque não tinha quem guiasse para nós. Então, a gente ia de ônibus e voltava. Mas era muito gostoso Era uma vida simples, muito boa. A gente, quando ia aos bailes, ia a pé, do centro da cidade, onde morávamos, até o Tênis Clube, a pé. Ninguém ia de ônibus: vínhamos e voltávamos a pé, fazendo farra... Foi uma vida muito bonita. Eu tenho boas recordações. Meu casamento foi em São Paulo, porque a moça é de São Paulo. Era pra ter sido um casamento muito lindo, muito chique demais, era uma festa pra marcar uma época. Mas, justamente uma semana antes, meu pai faleceu, e todos: “Vai ter casamento, não vai ter casamento?”. “Vai ter sim, o que é isso?” Passou [o] sétimo dia, aí já estava marcado o casamento: quinze dias depois. A festa que ia ser estrondosa, teve que ser um pouquinho mais simples. Eu estudava na faculdade e todos os professores foram convidados, familiares deles também. Eram gente muito rica, muito poderosa, todos eles foram convidados. Mas no dia do casamento já estava distribuído o convite pra aquela festona - ia ser no Fasano, era a coisa mais rica, mais chique, nem sei se eu ia me sentir tão bem, sei lá - , eu sei que afinal, fizeram a mesma festa, não tiraram [do convite a menção a] a festa. O casamento foi na igreja em São Paulo, muito grande, muito bonita. Todo mundo foi na igreja, na hora, todo mundo certo que ia na festa, todos preparados, mandaram presentes riquíssimos, coisas lindas - eu tenho até hoje guardado, não perdi nada. Só que tiveram que anunciar que em vista do luto ficou sem efeito a festa. Nem sei como é que avisaram, se foi o padre que fez a comunicação, mas a festa foi tão grande na casa dela - porque ela morava numa casa muito grande, enorme, um palacete - , mas ficou restrito só à nossa família, que era grande também. Do lado deles era grande; do nosso lado também. Vinha gente do Rio, daqui, tal, foi um casamento belíssimo, muito, muito pomposo, só que infelizmente não pôde ser no Fasano, devido ao luto. Também não ficaria bem mesmo. Na lua-de-mel, viajei pro Rio de Janeiro. Passamos mais de vinte dias lá. Nós fomos de ônibus. Casei em 1959. Foi uma lua-de-mel muito bonita, fui muito feliz, a minha esposa é uma criatura fora de série, muito bondosa. A afinidade foi muito grande, a verdade é essa. Ficamos no Trocadilho Hotel. Era lançamento do hotel, um hotel lindo, passamos na praia, visitamos todos os lugares e aproveitamos. No final, fomos convidados para irmos à casa de meus parentes que moravam lá também, eles estavam muito bem de vida. Acordamos um dia e encheu de parentes: todo mundo levando presentes, essas coisas. No hotel. Foi todo mundo. Mas nós não fomos à casa de ninguém naquele dia, ficamos fazendo a nossa lua-de-mel, fazendo nossos passeios no Rio de Janeiro. Só depois de quinze dias que fomos dar atenção aos parentes. Voltamos para São Paulo, porque a família dela mora lá. Naturalmente, fomos recepcionados em São Paulo no sábado e domingo. Chegamos e ficamos na casa da minha sogra. Foi um almoço muito gostoso, e viemos pra cá. Mas não tínhamos parada em São José: eu ia duas vezes por semana a São Paulo. Eu tinha morado um pouco lá e gostava demais de São Paulo. E para agradar minha esposa, eu: “Vamos lá?”. Ela: “Opa”, e íamos os dois. Não tinha muito compromisso. Uma coisa importante que passou logo que nós casamos: naquela ocasião, uma sobrinha minha de São Paulo, uma amiga da minha esposa mais outros dois casais formamos um grupo, e todo sábado e domingo nós nos reuníamos, toda santa semana; não ficávamos em São José. Eu não casei em São José, eu casei em São Paulo. Só depois de muito tempo, depois de nove ou dez meses, quando ela já estava esperando um nenê, é que começamos a ficar um pouquinho em São José dos Campos. Aí a minha vida continua em São José dos Campos, como hoje.
COMÉRCIO
Sempre a Associação Comercial esteve no centro da cidade. Era um salão relativamente bom e foi passando o tempo e, se não me engano, o presidente na época era o Tufi Simão, ele ficou muitos anos. O comércio dele era de carros, Chevrolet. Sempre foi como é hoje: Associação Comercial e Industrial. Eles ajudam bastante os comerciantes, muito, sempre protegem, orientam, organizam de forma que o comerciante seja amparado na questão jurídica, contábil. Sempre há uma vantagem nesse sentido. Eles não deixam o comerciante abandonado. São pessoas que têm cultura, experiência. Fiz parte do sindicato, da associação lá, eu sou do conselho deliberativo, porque na minha idade... As reuniões são periódicas, de quinze em quinze, ou de mês em mês. A gente está sempre participando e colaborando mesmo, não é só participar, não. Existe muita união entre os comerciantes, não existe este problema de comunicação. Sabe por quê? O comércio, cada um tem o seu e a própria prática do comércio passa a ser uma lição pra cada um. Eles não podem depender de um conselho meu para a firma dele porque na dele tem nuances que na minha não acontece. Então eles não vêm nunca procurar, e há segredos também que ninguém gosta de contar, não é verdade? Ninguém gosta que alguém penetre na sua privacidade. É como um casamento: alguém vai dizer: “Minha família, eu faço isso, eu faço aquilo, me dá um conselho”. Nunca. Existe privacidade em tudo, e no comércio é a mesma coisa. Agora, quem tem mais empregados, menos empregados, ele tem que saber como lidar com essa turma. Outra coisa: a particularidade da nossa firma, que os nossos empregados nunca saem, eles entram e ficam. Atualmente, a Tereza é a mais antiga, mas o Pedro já foi também, o Sebastião foi mais antigo, todos. A maioria foi com 55 anos, José Terra, outro, ficou 45. Não saem. Esta Tereza está com 37 anos e não sai, está aposentada dentro da firma. A mercadoria sempre foi a mesma, só que eliminou certas mercadorias e acrescentou outras no lugar: iniciamos com artigos finos de bordado, toalete, calçados. Precisa ver os calçados que nós vendíamos Fora de série: masculinos, femininos, as melhores marcas do estado de São Paulo e do Rio estavam na nossa casa. Com o tempo, há dez, quinze anos atrás, nós achamos que não devia ter tanta variedade de mercadoria, então a primeira coisa que foi eliminado foi o calçado feminino. Porque deixaram muito. Calçado feminino é o seguinte: você tem que ter mais uma filial, umas duas, pra descarregar aquele que não está vendendo mais na sua, e colocar novos aqui. Como têm essas firmas, você pode ver: firma de calçado nunca tem uma loja só. Firma boa mesmo tem quatro, cinco, fico bobo. Eles devem ter muito capital pra poder enfrentar isso. Qual a razão que eles fazem isso eu não sei, mas eu sei dizer que se a pessoa não tiver umas duas, três filiais pra descarregar aquilo que já cansou aqui e que noutro lugar vai ser ótimo, então ele tá perdendo dinheiro. Quando nós percebemos que a nossa mercadoria podia ser um peso, caiu fora. Mulher primeiro, depois calçado de homem. O que nós mantivemos agora, graças a Deus, e vamos indo bem por isso, são os artigos profissionais: tem calçado, roupa, tudo profissional. O cara vai lá e encontra jaleco, calça, camisa: tudo profissional. Quem quer ir a um casamento, usar uma roupa para casar, ele não precisa procurar na loja Confiança, que hoje eu não tenho. O máximo que ele vai encontrar é uma camisa profissional, mas que dá pra adaptar, porque o colarinho é igual. Nós não temos atendimento como tínhamos antigamente - só tínhamos pra alta classe, hoje é pra média classe. E temos uniformes pra colegiais, Olavo Bilac, aquela outra escola das irmãs. Neste sentido de colegial, nós temos o melhor e somos preferidos; profissionais também, somos os preferidos. O pessoal compra hoje e daqui a dez meses, se precisar, volta a comprar de novo, e compra bastante. Isso é que mantém a nossa firma. Somos profissionais, colegiais e artigos esportivos, tudo que é coisa relativa a esporte nós temos: chuteira, tênis, joelheira..., tudo com variedade. Nossa firma se limitou a determinados artigos e, graças a Deus, se mantém. Se dependêssemos de artigos misturados não daria, então selecionamos mesmo. Devia ter outra loja nossa pra esses artigos mais finos, mas não temos condição pra isso. Por enquanto, não.
CIDADES
São José dos Campos Acho que São José deu esse salto de desenvolvimento na época do Sobral. Quando ele foi prefeito. Existe antes de Sobral e depois de Sobral. Falo com muito orgulho e prazer, sempre gostei dele. Como amigo, como pessoa, como capacidade. Foi ele que levantou o INPE [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais], ele foi uma pessoa extraordinária no ambiente nosso. Não sei se muitos reconhecem isso, mas eu tenho certeza que ele foi um elo aqui em São José. Eu posso dizer: antes do Sobral, tudo que eu falei; e depois do Sobral, este grande progresso que é hoje: supermercados, muitos colégios de nível superior, estas escolas maravilhosas que estão se formando. Eu não sou muito de guardar nomes, então eu prefiro não falar pra não fazer feio diante vocês. Outros também foram bons, todos colaboraram, até hoje. O prefeito de hoje é maravilhoso. Quem pode falar contra ele? Quem pode falar contra o nosso prefeito anterior? A prefeita também foi excelente, fez grandes progressos. Mas quem realmente está fazendo o melhor é o atual prefeito. Ele ama São José dos Campos.
RELAÇÃO COM O COMÉRCIO
Gosto do shopping. Acho muito importante. O shopping é um elo de progresso numa cidade: cidade que não tem um shopping ficou relegada para o passado. Tudo isso é maravilhoso. Pode prejudicar o meu comércio, mas não prejudica meu resultado, porque meu resultado não depende da mercadoria do shopping. Nós fomos substituindo mercadorias, colocando outras para que o nosso comércio fortalecesse. Toda essa mudança [foi] pra ficarmos fortes, e não fracos. E não pode olhar mal para um comércio como o shopping, porque eles trazem não só facilidade para o povo nas compras: ele traz aquela variedade de produtos, nas ofertas, para quem sabe aproveitar e levar vantagem. Por que não? Se tiver chance de ir no shopping procurar as suas vantagens, encontra. Não precisa mais ir a São Paulo, Rio, como antigamente, para comprar uma coisa melhor. Hoje eles é que vêm comprar da gente. Nós temos coisas melhores que eles, ainda. Eu acho que shopping é o maior elo de progresso de uma região. Feliz a cidade que tem.
COMÉRCIO
Não houve impacto no comércio com a inauguração do shopping. Pra quem trabalha honestamente, com critério, não existe esta queda de venda. O shopping não traz nenhuma queda de venda, como existem essas ofertas na rua Quinze de Novembro, dessas firmas grandes... Nada, nada disso atinge o nosso comércio. Eles fazem grandes ofertas. Eu aproveito quando eu quero, eu vou comprar também, por que não? Compro pro meu uso. Mas não deixo de vender porque eles estão fazendo oferta: eu também faço as minhas ofertas. A gente tem que saber lidar e saber cuidar bem do cliente, do freguês, respeitá-lo, não [é] porque ele está entrando na minha casa que ele tem que comprar o que eu tenho, absolutamente. Eu devo respeitá-lo porque ele é um elemento importante da cidade, se ele não gostar da minha mercadoria, vai encontrar no meu vizinho. Agora, eu tenho certeza de que ele volta pra mim porque ele vai encontrar na minha mercadoria preço mais baixo. Nós temos um critério de venda com preços mais baixos. O freguês pode entrar uma vez, duas vezes, na terceira ele não vai mais em lugar nenhum, vem direto: “Quero isso, quero aquilo”, não dá nem trabalho. Tenho clientes fiéis Não se trata de fiéis, trata-se de clientes preferidos, que preferem a nossa firma pelo critério de trabalho nosso, e nós não forçamos venda. Nós temos empregados antigos, poderiam estar viciados nisso ou naquilo, nada Muitas vezes eu sou o pecador, quando um freguês sai, eu pergunto - às vezes, só pra mexer um pouquinho com a idéia do funcionário: “Me diga uma coisa, ele gostou, encontrou...?”. “Não, ele vem buscar.” Freguês que já deixou separado, ele volta mesmo. Eu, infelizmente ou felizmente, não sou desses de forçar a venda. Eu sou elemento de argumentar para venda. Então, se a senhora vê uma coisa na minha mão eu digo: “Essa coisa é boa por isso, por aquilo”, mas não forçando o freguês. Ele: “Obrigado, até logo”. “Até logo.” E volta a pegar. Por quê? Eu expliquei a razão daquela mercadoria. Mas hoje eu não atendo muito mais o freguês, já foi a minha época, porque elas, as vendedoras, são muito competentes. Não há necessidade. Eles compram, gostam. Quando estou atendendo eles estão muito felizes, porque eu não forço nada. Quando eu quero explicar, eu explico, pra melhorar a venda, se eles quiserem também; se não pedirem, nem falo. Se eles estão meio em dúvida, eu: “Isso é bom por isso”. Às vezes, a pessoa entrou pra mostrar que a mercadoria é realmente boa, que ela pode vir em confiança, mas não forço nada não. Nosso critério é esse. Não vendemos com cartão de crédito. Houve uma ocasião que nós começamos com cartão de crédito, houve uma irregularidade no banco - não foi comigo que aconteceu - , e o meu filho Ricardo disse: “Sabe de uma coisa? Não vamos mais trabalhar com cartão de crédito”. Não foi comigo, eu não estava nem na loja nesse dia. Os fregueses perguntam: “Vocês trabalham com cartão de crédito?”. Todo mundo quer mas: “Infelizmente não, mas pode dar cheque”. Eles dão cheque, cheque a vista, não temos mais crédito. Porque o nosso preço é baixo, não convém mais fazer a crédito. A crédito eu perco. O segredo é só dar 20% sobre o preço normal. Não é 5%. Esse pessoal tem mania, quer dar 5%, 7%, 9% - não adianta, ou dá ou não dá. Se quer dar desconto, dá 20%, pesa no resultado. Mas se começar a dar cinco numa mercadoria, sete na outra, quinze na outra, o freguês não sabe quando está comprando bem ou está comprando mal. Quando o freguês [diz] assim: “O senhor não faz mais barato?”, eu digo: “Olha, mas está com 20% de desconto”. Esse é meu lema. Ele sabe que está mais barato, ele confere. O freguês que chega na nossa loja, ele já especulou em vários lugares, ele sabe que meu preço está mais baixo. É essa a diferença. A gente tem que ser honesto: comércio é com honestidade. Comércio com malandragem é prejuízo total, fica a fama mesmo. Clientes da zona rural não existem mais, acabou. Rural foi até os anos 49, 50, depois São José evoluiu muito, o mundo evoluiu muito. Não existe mais rural. Até aquela época ainda tinha, mas agora não. O mundo virou de uma vez só. O cliente hoje é mais esperto, mais amigo do que nos tempos antigos. Por quê? Hoje eu digo assim: “Minha mercadoria, ela custa X”. Eles procuram várias firmas do mesmo ramo e encontram, já estão sabendo que a minha mercadoria é o preço que eles querem, eles ganham algo aqui, vinte centavos ali. Nunca alto: baixo, sempre mais baixo, não interessa quanto. Então cria confiança, eles voltam, eles querem bem a gente, não porque eu esteja fazendo algum presente pra eles não, é porque eu estou solicitando coisas e procurando facilitar para eles a maneira de comprar mais barato. Por acaso você fica descontente se alguém disse que está mais barato? Não. Todo mundo quer, dez centavos já está bom, se for muito, melhor. É assim a nossa vida. Eu acho tão bonito, o povo de hoje é um povo esclarecido, as mães são mais amigas dos filhos. Não tem ninguém grosseiro hoje pra dar um tapa num filho ou proibir fazer isso, pelo contrário, estão deixando tudo fácil. A gente tem que ser claro, positivo, não tem que ter medo de nada não, desde que não faça coisa errada. Não pisa no calo de ninguém, senão você vai ver
RELAÇÃO COM O COMÉRCIO
Faço compras, toda minha roupa, não deixo ninguém comprar. Nem a esposa. Não, pelo amor de Deus, nunca Nunca gostei que alguém comprasse algo pra mim. E toda vez que compraram, tenho certeza que enfurnei em algum canto. Porque eu tenho minha personalidade, não adianta. Eu tenho prazer de ter aquele tom, aquela cor, sei lá... Eu não sou extravagante, mas não gosto das coisa muito escuras, muito bobas, assim esquisito, né? Eu gosto de usar as coisas que quando eu pegue e ponha no corpo, olho pra mim no espelho: “É essa”. Eu posso ter dez peças em casa, três estou usando, sete não. Tenho muita personalidade. Nesta parte de roupa eu tenho, toda vida. Eu sou tão simples, tão fácil, eu vou atrás, eu pego, eu faço, achei que não dá eu saio, quando achei que está bom, eu levo. Se eu levei desvantagem eu uso uma vez ou duas porque comprei, depois não uso mais, encosta lá. Fica guardado, um dia eu dou pra alguém. Eu dou mesmo, ou porque ficou um pouquinho maior ou mais apertado, eu dou, não quero ficar com nada. Mas o que eu gosto não deixo ninguém pegar não, nem meus filhos. Eu vou ao shopping, vou a qualquer lugar, sou muito simples - simples não: eu sou esperto. Falo assim, em sentido de facilidade, me acomodo em todo lugar. Toda vida, desde criança, em qualquer lugar que me puser, eu entendo o lugar, eu faço as coisas. Se eu estou aqui, pode estar certa, se eu não me sentir à vontade, eu não falo nada. Vou à rua Sete, à rua Quinze, entro, saio, vejo, converso, eu só compro aquilo que me interessa. Não queira me vender coisa que eu não quero porque não levo, não levo mesmo. Eu dou um jeitinho, saio; eu sempre tenho desculpa: “Eu volto depois”. Mas quando eu quero, ninguém me tira aquilo fora não. Eu quero, eu quero mesmo, e já levo antes que alguém pegue, de medo que alguém venha e pegue primeiro. Meu filho gosta de pagar a prazo, eu não: prefiro pagar a vista, não sei por quê, eu me sinto bem. Se disser: “Pague em dez vezes”, pelo amor de Deus, pensar todos os meses, eu pagar dez aqui, vinte ali... já calculou? Comprar quatro, cinco coisas pagando em dez vezes. Então, naquela relojoaria, naquela ótica, naquela loja tem que ir toda vez pagar e tem a data certa. Se passar da data, bem..., vê pelo acréscimo. Mas eu posso pagar. Então tem uma coisa: eu guardo, eu não tenho pressa de nada, eu tenho tudo. Desculpe, é porque eu tenho tudo, por isso que eu falo assim. Pode ser que se eu não tivesse, fizesse essas compras assim. Eu tenho tudo. Tudo que eu tenho, dá. Não preciso de nada. Eu estou com essa calça, camisa, sapato confortável, ótimo. Eu não preciso de nada, mas se eu gostar de outra coisa eu vou buscar. Vaidade Aí já é vaidade. Mas eu compro, e com prazer eu gasto e não pechincho. Porque se tem aquele preço, por que vou chorar? Se eu estou comprando é porque eu posso, por que eu vou pechinchar? O coitado precisa ganhar, às vezes é comerciante antigo, o cara precisa ganhar, eu estou comprando coisa boa. Agora, quando tem uma liquidação, compro também: não tem que pechinchar porque é liquidação. Se eu gostar eu compro também. Eu sou simples neste sentido, eu não vou no mais caro. Às vezes, eu passo assim: “Tem disso aqui no número...?”. “Tem.” Entro lá, se encaixar, pronto. Quantas vezes já comprei... Mas chego em casa, uso duas vezes, vejo que não serve e encosto. Não é porque paga barato, é porque não era aquilo que era meu, fui precipitado. Mas quando eu vou comprar uma coisa que realmente eu gostei, eu não faço questão de pagar mais caro, como não faço questão de pagar bem mais barato. Mas eu comprei porque eu gostei. Eu não gosto, “Fico com isso, aquilo é melhor”. Eu comprei uma vez - vou contar um caso assim rápido. Fui numa loja de calçados, eu tinha loja de calçados também, mas acontece que eu não tinha mais daquele calçado. Fui lá, sentei experimentei e o sapato..., eu não sei, meu pé é um pouco baixo, não é qualquer forma que fica boa. Ele trouxe um sapato, ficou meio grandinho, eu queria um raso, mas o raso não fica bom pra mim, tem que ser amarrado mesmo, a gente amarra e segura. Então eu pus no pé, aí o dono lá - são três donos - um deles: “Esse está bom, é o seu número”. Infelizmente eu confiei, não olhei o número, ele me deu um número a menos. Depois que eu levei pra casa, eu usei, sujei a sola, depois de, muito apertando. Nunca mais voltei lá, porque não precisei, mas o dia que eu precisar, a primeira coisa que eu vou olhar é o número, porque eu sei que ele tapeia. Por isso que a gente tem que ser honesto. Ele me embrulhou. Eu gosto de dar presentes, tenho gosto pra escolher as coisas. Eu paro nas vitrines e olho, faço questão de agradar. Tenho prazer mesmo de agradar. Eu posso dar um presente porque eu tenho prazer de dar esse presente, porque chegou a data certa, o momento certo. Eu vou buscar, eu me viro. Eu encontro uma razão qualquer, e trago uma coisa que sempre agrada. Não trago nada feio. Eu faço questão de gastar mais. Por exemplo: uma coisa que possa custar dez, se eu encontra uma de trinta ou quarenta, eu prefiro gastar quarenta e trazer, não vai fazer falta. Nada faz falta pra gente: “Puxa vida eu vou gastar quarenta, podia gastar dez, com isso eu compro uma pintura, uma sandália...”. Não penso assim: eu acho que quando a gente dá, tem que dar com prazer, pra pessoa gostar. E às vezes nem dura tanto tempo, flor não vai durar tanto. Mas é o prazer de dar um negócio que a pessoa ali, na hora, lembrou.
AVALIAÇÃO
Trajetória de vida Um fato marcante para mim, no comércio, é que comecei a trabalhar com doze anos, quando eu comecei freqüentando esta loja. Casa Confiança, que era do meu primo e do meu pai. Quando eu fui trabalhar na loja, meu pai já era sócio dele, foi só dois anos de diferença da entrada dele, de 27 [quando o primo de seu pai abriu a loja, sozinho] a 29, quando o papai já entrou. Eu tinha doze anos, o papai já era sócio, então ele fez questão de me colocar ali pra me dar uma ocupação, porque eu queria estudar à noite, não queria estudar de dia. Estudei de noite no Olavo Bilac. E quanto ao que marcou na minha vida em São José dos Campos, eu sempre fui assim..., eu não tenho essa coisa marcada na minha cabeça, mas eu sempre tive bons amigos, bons relacionamentos. Como em 34 foi que eu comecei a trabalhar, comecei a ter amizade com os rapazes que trabalhavam na firma. E o que importante talvez fosse pra mim, agora eu posso concatenar um pouco: tinha dois rapazes que trabalhavam conosco e nós andávamos de bicicleta nessa época, cada um tinha a sua, eles tinha as deles eu a minha, a gente fazia trabalho no sábado à tarde, não lembro mais se foi sábado ou domingo, nós fazíamos os passeios nos lugares distantes do centro, era uma região não explorada, e aquilo marcou muito pra mim pela amizade que eu fiz com eles. A gente fazia questão de andar pela cidade toda, a gente desbravava aqueles lugares, não tinha casa, mas tinha fontes... Passeio assim, de roça mesmo, cidade onde não tem muito movimento, onde tem uma fonte de água, que tem uma beira do rio, tem clubes. A gente ia nos clubes também, ficava lá com os amigos, sempre acompanhado. Outra coisa que marcou bastante, que eu me lembro, foi na beira do rio que eu lhe falei, agora me lembrei: tinha um cocho - é um cercado de madeira, dentro do rio, que a gente pode nadar ali. Eu não nadava muito bem na época, eu aprendi a nadar ali e me divertia extremamente. Além da bicicleta, que foi o ponto alto mesmo, nós íamos sempre passear assim.
AVALIAÇÃO
Comércio A maior lição de vida é o comércio mesmo. Sabe por quê? Esse relacionamento com as pessoas. Eu me lembro, a dona Luiza, a senhora do doutor Tertuliano - pouca gente aqui lembra disso - era uma senhora linda, um porte maravilhoso, fina, impressionava muito, fazia questão de comprar da loja. Só comprava a coisas finas, que nós tínhamos lá, artigos importados, e ela sempre me impressionou muito. Ela comprava mais com meu irmão Chico, mas de vez em quando passava pra meu lado, batia um papo comigo, ela tinha muita simpatia comigo, eu gostava demais quando ela dava aquela atenção, e eu fui aprendendo muita coisa com as pessoas. Por exemplo: dona Luiza me dava não só prazer de estar conversando com ela, mas aquela liberdade que ela dava pra gente, pelo nível que ela tinha, e nós éramos balconistas. Balconista pra pessoa de nível alto tem uma diferença grande, e a gente distinguia essa diferença, a gente era jovem, não tinha a cultura da dona Luiza, então a gente sentia recompensado por uma pessoa do nível dela dar aquela atenção. Ela tinha muito carinho pro nosso lado, e não só ela, todos os outros fregueses que iam fazendo amizade. Tinha freguês que esperava pra comprar da gente, naquela época. Hoje não, porque já deixo pras moças trabalharem, porque se eu não deixo elas trabalharem eu tiro o pão delas. Se eu começar atender, quando chega a vez delas, não encontram mais ninguém. Então eu nem apareço. Quando o freguês entra, eu deixo, elas sabem fazer o serviço delas muito bem, melhor que eu. Mas, naquele tempo, o freguês fazia questão de ser atendido por mim. É aquele caso que você falou: “Não tinha alguém que dava preferência...”, e davam mesmo. E essa lição de preferência é que vai elevando o nosso nível de conhecimento e de cultura, até que a gente chega a fazer cursos como contador, como direito, como fiz ultimamente. Isso dá um cabedal muito forte, muito grande, e a gente cria um caráter superior com o tempo, ao nível de poder conversar até com uma criança e ser feliz em conversar com uma criança. Isso é o comércio.
AVALIAÇÃO
Entrevista Estou muito feliz, muito recompensado. Pra mim é um prêmio que estou recebendo de vocês. Não sou eu que estou trazendo alguma coisa, eu estou recebendo de vocês essa beleza, essa compreensão, porque na realidade, aqueles papéis que eu lhe entreguei bastariam pra você entender uma porção de coisa que está escrito ali, pois três entrevistas e mais aquelas duas fotografias que tirei hoje - que ficou de eu trazer depois ou você pegar lá - , mas a verdade é essa: o que a gente capta com vocês aqui são elementos de valorização. Eu me sinto valorizado hoje por vocês. Eu não fiz nada de mais, eu só contei prosa. [Risos.]. Vocês me aturaram. A gente desenvolve muito. Eu nunca rejeito qualquer convite, já fizeram várias entrevistas lá na loja, eles vão lá. Uma vez foi uma moça também - precisar de entrevista eu dou, na loja, no balcão assim - , não era pra fazer naquele momento, daqui a pouco vem mais uma senhora, mais madura, nossa eu fico feliz, me faz falar uma porção de coisa. Mas foi rápido também. Aquilo lá me valorizou, eu me senti valorizado. Eu não me sinto mal quando alguém me procura, já estou sendo procurado por mais um senhor: “Você me dá uma entrevista?”. E digo: “O senhor me desculpa mas já estou com uma entrevista marcada. Mas pode estar certo que eu vou atendê-lo, sim”. Eu não tenho acanhamento nenhum, eu tenho facilidade pra conversar. Não sei se tudo isso agradou muito vocês, mas espero que vocês tirem algum proveitinho disso.